18/12/2022

A Queda

"Nessas noites, antes, nessas manhãs, pois a queda produz-se ao romper da alva, eu saio e parto, numa marcha impetuosa, ao longo dos canais. No céu lívido as camadas de penas adelgaçam-se, as pombas sobem um pouco, uma claridade rósea anuncia, ao nível dos telhados, um novo dia da minha criação. No Damrak, o primeiro elétrico faz tinir a sua campainha no ar húmido e toca a alvorada da vida nesta extremidade desta Europa, onde, no momento, centenas de milhões de homens, meus súbditos, se arrastam penosamente da cama, com a boca amarga, a fim de irem para o trabalho sem alegria. Então, pairando em pensamento por cima de todo este continente que me está submetido sem o saber, bebendo a luz de absinto que sobe, ébrio enfim de ruins palavras, sinto-me feliz, sinto-me feliz, proíbo-o de não acreditar que me sinto feliz, que morro de felicidade!
Oh, sol, praias, ilhas sob os alísios, juventude cuja lembrança desespera!"
Albert Camus - "A Queda" - 1956

10/11/2022

PIER PAOLO PASOLINI - Centenário 1922-2022


Pier Paolo Pasolini - Centenário 1922-2022; Acrílico e tinta china s/ papel de Primobansky - Porto

28/10/2022

Intervenções

"Consciente de que a vida dos homens se desenrola num ambiente biológico, técnico e sentimental (quer dizer, só muito acessoriamente político), consciente de que essa vida tem por desígnio o esforço para alcançar objectivos privados, ele rejeitará instintivamente qualquer convicção política vincada. O homem revoltado, o resistente, o patriota, o agitador surgir-lhe-ão antes de tudo como indivíduos desprezíveis, movidos pela estupidez, pela vaidade e pelo desejo de violência.
Contrariamente ao reaccionário, o conservador não tem nem heróis nem mártires; se não salva ninguém também não faz vitimas, não haverá nele nada, em suma, de particularmente heroico; mas será, é um dos seus encantos, um individuo muito pouco perigoso.”
Michel Houellebecq - “Intervenções” - 2021

27/08/2022

05/08/2022

Realismo Capitalista

“Todavia, a catástrofe ambiental apenas figura na cultura do capitalismo tardio como uma espécie de simulacro, sendo as suas verdadeiras implicações para o capitalismo demasiado traumáticas para que o sistema as assimile. A importância das criticas ecologistas é o facto de sugerirem que, longe de ser o único sistema político-económico viável, o capitalismo está de facto talhado para destruir todo o meio humano. A relação entre capitalismo e desastre ecológico não é uma coincidência nem um acidente: a «necessidade de um mercado em constante expansão» do capital, o seu «fetiche do crescimento», significa que o capitalismo se opõe pela sua própria natureza a qualquer conceito de sustentabilidade.”
Mark Fisher – “Realismo Capitalista” - 2020

16/07/2022

Uma Abelha na Chuva

“de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortado ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e estrelas; o coração talhado numa grande pureza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras. Agora não. O vento impelia o marulho da treva, vinha salpicá-lo duma poeira húmida de ruínas; as costas doíam-lhe de encontro ao peitoril; mudou de posição, fez um esforço para se endireitar, fincando as mãos no rebordo da janela, e ficou cambaleante, de olhos abertos para a noite, negra de lado a lado: o luar nunca existiu, as estrelas também não, mas onde diabo terei eu visto já luar e estrelas, se nada vejo agora? O vento arrastava a poeira, apagava os astros, sumia tudo e na escuridão as coisas fermentavam. Apodreciam. Sabia-lhe mal a boca, um soluço flatulento e choco agitava-o. Deu-lhe vontade de chorar, chorar apenas, sem saber porquê. Esfregando os olhos, compreendeu confusamente que estava diante da janela aberta, entontecido e indisposto, que tinha a noite pela frente e que a noite lhe fazia bater os dentes devagar, cheio de frio.”
Carlos de Oliveira - “Uma Abelha na Chuva” – 1953 / 1980

12/06/2022

Fahrenheit 451

“Faz a pergunta a ti mesmo. Que procuramos nós acima de tudo, neste país? As pessoas querem ser felizes, não achas? Não lhes ouviste dizer isso toda a vida? Quero ser feliz, declara cada um. E, bem, são eles felizes? Não velamos nós para que estejam sempre em movimento, sempre distraídos? Não vivemos senão para isso, não é a tua opinião? Para o prazer, para a excitação? E deves concordar que a nossa civilização fornece um e outra à saciedade. 
- Sim. 
- Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queimemo-lo. A Cabana do Pai Tomás não agrada aos brancos. Queimemo-la. Um tipo escreveu um livro sobre o tabaco e o cancro do pulmão? Os fumadores de cigarros ficaram consternados. Queimemos o livro. A serenidade, Montag, a paz, Montag. Liquidemos os problemas, ou melhor ainda, lancemo-los no incinerador; os enterros são tristes e pagãos? Eliminemo-los igualmente. Cinco minutos após a morte, todo o individuo vai a caminho do Grande Crematório, por meio dos Incineradores servidos por helicóptero em todo o país. Dez minutos após a morte, o homem nada mais é do que um grão de poeira negra. Não vaticinemos acerca dos indivíduos a golpes de inconsoláveis memórias. Esqueçamo-los. Queimemo-los, queimemos tudo. O fogo é brilhante, o fogo é limpo.” 
Ray Bradbury – “Fahrenheit 451” – 1953

07/06/2022

06/05/2022

Lanzarote

    “Eu não gosto de mim. Tenho pouca simpatia por mim e ainda menos estima; além disso, não sou muito interessante. Conheço as minhas principais características desde há muito e acabei por me cansar delas. Em adolescente, e mesmo já jovem adulto, falava de mim, pensava em mim, era como se estivesse cheio de mim; já não é o caso. Ausentei-me dos meus pensamentos e basta a perspectiva de ter que contar qualquer episódio pessoal para me sentir imergir num tédio semelhante à catalepsia. Quando sou absolutamente obrigado a isso, minto.
No entanto, paradoxalmente, nunca me arrependi de me ter reproduzido. Poder-se-á mesmo dizer que amo o meu filho e que o amo mais ainda cada vez que reconheço nele vestígios dos meus próprios defeitos. Vejo-os manifestarem-se no tempo, com um determinismo implacável, e isso alegra-me. Alegro-me sem pudor por ver repetirem-se, e assim eternizarem-se, características pessoais que nada têm de especialmente louvável; que muitas vezes até são desprezíveis; que, na verdade, não têm outro mérito senão serem minhas.”
Michel Houellebecq – “Lanzarote” - 2000

23/04/2022

Steve Mackay

Steve Mackay & The Radon Ensemble - Deslize (Braga) - Abril 2004

01/04/2022

Van Gogh, o Suicidado da Sociedade

    Só pintor, van Gogh, e nada mais,

    nada de filosofia, mística, ritual, psicurgia

ou liturgia,

    nada de história, literatura ou poesia,

    estão pintados os seus girassóis de ouro trigueiro; estão pintados como girassóis e pronto,

mas agora temos de voltar a van Gogh para

entender um girassol ao natural, tal como se

não pode já, para compreender uma tempestade ao natural

    um céu tempestuoso,

    uma planície ao natural,

    deixar de voltar a van Gogh.

Antonin Artaud - “Van Gogh, o Suicidado da Sociedade” - 1975

16/03/2022

A China Fica ao Lado

    “Noite de Ano Novo chinês. Meio oculto no vão da porta, e imperturbável, o herbanário assiste ao espectáculo das ruas: homens e mulheres passando, eufóricos, com o ramo de pessegueiro erguido alto, como meninos pequenos segurando a amarra dos papagaios. Vão ao pagode apresentar oferendas, trocam presentes entre si, compram bolos pesados e enjoativos, comem e bebem, jogam jogos de azar, amam. Nessa noite o herbanário não existe. Morrer fica para o dia seguinte. Morrer ou sofrer – que ainda é pior. O herbanário, pessimista e ateu, não tem nada com aquilo, nada com eles, de momento. Não o vêem nem o querem ver. Que masque as suas folhas e rumine os seus lúgubres pensamentos na sombra da loja. Rebentam com mais estrondo os panchões. O ar vai ficar completamente limpo à meia-noite, hora marcada para o nascimento do ano, quando o relógio da praça deixar cair solenemente as doze badaladas. Kung Hei Fat Choi – Festas Felizes!”
Maria Ondina Braga - “A China Fica ao Lado” - 1976

23/02/2022

Submissão

    “A humanidade não me interessava, até me desagradava muito, não considerava de todo os humanos meus irmãos, e ainda menos se tivesse em conta uma fração mais restrita da humanidade, por exemplo os meus compatriotas ou os meus antigos colegas. No entanto, num certo sentido desagradável, tinha de reconhecer que esses seres humanos eram meus semelhantes, mas era justamente essa semelhança que me fazia fugir deles; era necessário uma mulher, era a solução clássica, experimentada, uma mulher é sem dúvida humana mas representa um tipo ligeiramente diferente da humanidade, dá à vida um certo perfume de exotismo. Huysmans teria posto a questão quase nos mesmos termos, a situação não evoluíra desde essa altura senão de maneira informal e negativa, por lenta desagregação, por nivelamento das diferenças – mas mesmo isso tinha sem dúvida sido largamente exagerado.”
Michel Houellebecq – “Submissão” - 2015

11/02/2022

Patti Smith

Patti Smith, 1977, by Lynn Goldsmith

15/01/2022

A Arte e a Morte

“Também havia uma arcada de sobrancelhas como céu todo a passar por baixo, verdadeiro céu de violação, rapto, lava, tempestade, raiva, quer dizer céu teologal ao máximo. Um céu em arco alto como a trombeta dos abismos, como cicuta bebida em sonhos, um céu contido em todos os frascos da morte, o céu de Heloísa acima de Abelardo, um céu de apaixonado suicídio, um céu que tinha as raivas todas do amor.

Era um céu de pecado protestante, pecado que o confessionário retinha, pecado como os que pesam na consciência dos padres, verdadeiro pecado teologal.

E agradava-me.

Ela servia numa taberna de Hoffmann, mas criadinha devassa e ramelosa, devassa e mal lavada criadinha. Passava por água os pratos, fazia despejos e camas, varria quartos, sacudia baldaquinos e despia-se à frente da janela como todas as criadas de todos os contos de Hoffmann.”

Antonin Artaud – “A Arte e a Morte” - 1985

06/01/2022

L'amour va bien...merci

STRA - Avenida de Camilo (Porto) - 2020

02/01/2022

O Velho e o Mar

   “Nessa tarde, havia no Terraço um grupo de turistas e, olhando para a água, entre latas de cerveja vazias e barracudas mortas, uma mulher viu a enorme espinha branca com a portentosa cauda à ponta, que arfava e balouçava na maré, enquanto o vento leste levantava um mar picado e cadenciado, fora da entrada do porto. 
   - Que é aquilo? – perguntou ela a um criado, e apontava para a longa espinha dorsal do grande peixe, que era apenas lixo à espera de que o levasse a maré. 
   - Tiburon – respondeu o criado – Tubarão. – Queria explicar-lhe o que acontecera.” 
Ernest Hemingway – “O Velho e o Mar”  – 1952