19/12/2021

[O HOMEM-ÁRVORE]

Quem foi Baudelaire?

Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?

Corpos

que comeram

digeriram,

dormiram,

ressonaram uma vez por noite,

cagaram

entre 25 e 30 000 vezes,

e em face de 30 ou 40 000 refeições,

40 mil sonos,

40 mil roncos,

40 mil bocas acres e azedas ao despertar,

tem cada qual de apresentar 50 poemas,

o que realmente não é de mais,

e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática

                está muito longe de ser mantido,

está todo ele desfeito,

mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.

Nós somos 50 poemas,

o resto não somos nós mas o nada que nos veste,

se ri para começar de nós,

vive de nós a seguir.

Ora este nada nada é,

não é qualquer coisa

mas alguns.

Quero dizer alguns homens.

Animais sem vontade nem pensamento próprio,

ou seja sem dor própria,

que em si não aceitam vontade de dor própria

e para forma de viver mais não encontraram

que falsificar a humanidade.

Antonin Artaud - "Eu, Antonin Artaud" - 1988

30/11/2021

O Fogo e as Cinzas

   “Após meia hora de marcha, parou num cruzamento, junto dum sobreiral. Era por ali que Zabela havia de passar se fosse ao Monte da Carrusca. Meteu o carro debaixo da copa rala de um enorme sobreiro, de forma a que as muares ficassem menos expostas ao calor violento do Sol, e sentou-se no chão com as costas apoiadas ao tronco da árvore. Sempre atento ao caminho que entrava pelo sobreiral, acendeu um cigarro, impassível e imóvel, de expressão parada, aguardando, sem que o seu espírito obstinado desse mostras de impaciência ou o corpo de cansaço. 
    Àquela hora, na agreste solidão dos campos, sequer uma asa cruzava o céu esbranquiçado e trémulo de lume. No entanto, pressentia-se vagamente o aparecer da tarde: a calma esmorecia um pouco e a sombra dos troncos alongava-se pela terra gretada e poeirenta. A espaços, as mulas sacudiam a cabeça, afastando as moscas, e as guiseiras retiniam, vibrantes, quebrando violentamente o profundo silêncio.
   De súbito, António de Alba Grande levantou-se; Zabela aparecera ao longe, por entre os sobreiros. Foi esconder-se atrás do carro – e, mal a rapariga chegou ao cruzamento, saiu a cortar-lhe o passo: 
     - Aonde vais?» 
Manuel da Fonseca – “O Fogo e as Cinzas”  – 1953

09/11/2021

As Terras de Poente

    “Os tempos desesperados da perseguição e da fuga, a emboscada que se adivinhava mesmo a tempo, a rápida facada na viela, o que se sente depois do assassinato, sentimentos doces e limpos como os que se experimentam ao renascer, a atenção constante, cada noite uma morada diferente, a fadiga extrema, as mudanças de identidade: comerciante, religioso, santo, académico, pedinte, médico, homem sem ocupação, viajante da insegura estrada das alianças que se trocam por dá cá aquela palha, compromissos parciais, lealdades traiçoeiras. (Ele sabe que este homem o vai trair. É imperioso não haver barulho.) Casas seguras que não são seguras. (Ele sabe que não pode lá voltar esta noite: montaram uma emboscada.)
Ele está seguro em Alamofora. Ninguém lhe pode tocar. Só que a segurança é a mais perigosa de todas as situações.”
William S. Burroughs - "As Terras de Poente" - 1987

18/08/2021

Serotonina

    “Lembrei-me de o arquitecto não ter parecido à vontade durante a minha visita, demorou-se o tempo estritamente necessário para me explicar o funcionamento das máquinas, dez minutos no máximo, e repetiu-me diversas vezes que o melhor era vender a casa, se tudo não fosse tão complicado, as formalidades notariais, etc., e sobretudo se tivesse a sorte de encontrar um comprador. De facto, deve ter passado um mau bocado nesta casa, um passado cujos contornos me eram difíceis de definir, entre o Marquês de Sade e o twist, um passado de que tinha de se desfazer, sem que com isso abrisse a possibilidade de um futuro, mas o conteúdo desta ala, em todo o caso, não evocava nada que pudesse ter encontrado na casa de Clécy, era outra patologia, outra história, e quando voltei para a cama estava quase sereno, tanto quanto, no meio das nossas tragédias, nos tranquiliza a existência de outras a que fomos poupados."
Michel Houellebecq – “Serotonina” - 2019

31/07/2021

Crazy Cock

   “Ter a estátua ali, de pé, fria, olhos vítreos, a trespassar-se interminavelmente, era como um filme em que a mesma cena é filmada cem vezes. A cada estalido do obliterador, os olhos mergulhavam mais fundo no sonho. Repetição morte e a violência da morte sonho de vida. Sonho e morte… a mesma cena filmada cem vezes. A cada estalido do obliterador, os olhos a mergulhar mais fundo. Mármore mudo lambuzado de erotismo, êxtase negro projectado no écran branco das fantasias. Histeria. Histeria de pedra. Pedra fêmea que se arrepia com a música. Estátua fornicando a verdade. Estátua masturbando mentiras. Masturbação contínua, obscena… uma litania de borracha num sonho de borracha. Uma mulher histérica com órgãos de mármore, uma mulher de mármore com órgãos histéricos, uma pedra-fêmea vomitando as tripas é uma fonte de fogo rompendo o gelo. Uma mulher histérica pode acreditar em tudo..."
Henry Miller – “Crazy Cock” - 1991

29/05/2021

O Coração das Trevas

   “Uma noite entrei na cabina, de vela na mão, e surpreendi-me quando o ouvi falar com voz ligeiramente trémula: - «Estou deitado aqui, nas trevas, à espera da morte.» A luz não se encontrava a mais de um pé dos seus olhos. Esforcei-me por murmurar: - «Que disparate!», e debrucei-me para ele, pregado ao chão. 
   Eu nunca tinha visto, nem espero tornar a ver, coisa parecida com a transformação que se dera nos seus traços. Não, emocionado eu não estava. Estava fascinado. Como se um véu se tivesse rasgado. No marfim daquele rosto vi uma expressão de orgulho sombrio, indomável poder, de abjecto terror – de um desespero intenso e sem esperança. Naquele supremo instante, de integral conhecimento, estaria ele a reviver a vida em todo o pormenor, com os seus desejos, tentações e renúncias? Deu um grito sussurrado a uma imagem qualquer, a uma visão qualquer – gritou duas vezes, um grito que não passava de sopro… 
    «O horror! O horror!» 
Joseph Conrad - "O Coração das Trevas"  - 1902

28/02/2021

Plataforma

“Há scooters que descem Naklua Road e levantam uma nuvem de pó. Já é meio-dia. Vindas dos bairros periféricos, as prostitutas vêm iniciar o seu trabalho nos bares do centro da cidade. Não penso sair de casa hoje. Mas talvez o faça ao final da tarde, para engolir uma sopa comprada numa das lojas junto ao cruzamento.
Quando renunciamos à vida, as últimas pessoas com quem contactamos são os comerciantes. Pela minha parte, limito-me a dizer algumas palavras em inglês. Não falo tailandês, o que cria em meu redor uma barreira triste e asfixiante. É muito provável que não tenha chegado a compreender a Ásia, o que, de resto, não tem qualquer importância. Podemos habitar um mundo sem o compreendermos, basta-nos ser capazes de obter alimentos, carícias e amor. Em Pattaya, a alimentação e as carícias são baratas, de acordo com os critérios ocidentais e mesmo com os asiáticos. Sobre o amor, sinto grande dificuldade em falar.”
Michel Houellebecq – “Plataforma” - 2001