01/12/2013

Gente do Milénio

"As pessoas não gostam delas próprias hoje em dia. Somos uma classe que vive dos rendimentos do século passado. Toleramos tudo, mas sabemos que os valores liberais foram concebidos para nos tornar passivos. Pensamos que acreditamos em Deus, mas estamos aterrorizados com os mistérios da vida e da morte. Somos profundamente egocêntricos, mas não conseguimos lidar com a ideia dos nossos eus finitos. Acreditamos no progresso e no poder da razão, mas somos perseguidos pelos aspectos mais sombrios da natureza humana. Estamos obcecados com o sexo, mas tememos a imaginação sexual e temos de nos proteger com enormes tabus. Acreditamos na igualdade, mas odiamos os excluídos sociais. Tememos os nossos corpos e, sobretudo, tememos a morte. Somos um acidente da natureza, mas pensamos que estamos no centro do universo. Estamos a alguns passos do oblívio, mas temos esperança de sermos de alguma forma imortais…"
J. G. Ballard – “Gente do Milénio” - 2003

01/11/2013

20/10/2013

Quem Governa?

Partilho esta análise muito lúcida, corajosa e perspicaz do que somos, e do que nos trouxe até aqui, publicada na edição de 18 de Outubro do jornal "Correio do Minho". O autor, Prof. Oliveira Rocha tem publicado nos últimos tempos uma série de artigos que deveriam ser de leitura obrigatória para todos os que se interessam pelo presente e futuro de Portugal.
 
"Há mais de cinquenta anos foi publicado um importante livro intitulado: Quem Governa? R. Dahl procurou uma alternativa à visão marxista que via na classe económica dominante a origem do poder. Por outro lado, não acreditava que as políticas fossem determinadas pelos eleitores; criou desta forma a abordagem pluralista à política, insistindo em que vários grupos de interesses competem na esfera política e o papel do governo é funcionar como mediador entre esses grupos.
Relativamente a cada política concreta, nenhum dos grupos tem recursos para decidir só por si; tem que fazer alianças. Ainda, segundo Dahl, os grupos são mais efetivos que os indivíduos; a pluralidade de grupos assegura a competição política; e o processo de negociação dificulta a aparição de extremismos.
Neste contexto, as eleições visam fundamentalmente legitimar os grupos de interesses e não determinar o sentido das políticas públicas.
Esta abordagem comum a G. Sartori, R. Dahl, S. Huntington e J. Shumpeter, explica o que se passa presentemente em Portugal.
Também aqui as decisões políticas resultam da interação entre diversos grupos de interesses que monopolizam o processo político. Só que no nosso país estes grupos não competem entre si, são aliados, funcionando em rede; o seu pessoal circula de grupo para grupo e casam-se entre si. Trata-se de uma classe dominante que suga o país e que decide da nossa vida.
O centro da rede é ocupado pela classe política, constituída pelos partidos que geram os governos e a assembleia, os gestores públicos e a alta administração que implementa as políticas. Mas, na verdade quer Passos Coelho ou Seguro são apenas figurantes; eles dependem dos outros grupos de interesses e presentemente das imposições dos credores.
Neste contexto, os meios de comunicação social têm um papel importante que não se pode confundir com o quarto poder. Desempenham algum controlo sobre os comportamentos dos agentes políticos; todavia, este papel tem limites impostos pela estabilidade e respeito pelos interesses instalados.
Por exemplo, o Secretário de Estado das Finanças e Orçamento foi simplesmente assassinado pelos comentadores políticos (Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Mendes e Correia Campos), enquanto Rui Machete com um comportamento incomparavelmente mais reprovável foi sempre desculpabilizado. E porquê? Porque é um dos “nossos” - ex-ministro, gestor público, advogado de um grande gabinete e consultor dos diversos bancos. A “pequena” falha do BPN é uma coisa de família em que é melhor não tocar.
Os magistrados têm igualmente um papel importante na rede, já que gerem politicamente os processos que envolvem os políticos. Ora investigam agressivamente para pouco depois congelarem o seu andamento, ora deixam sair informações para a comunicação social. E não falamos do Tribunal Constitucional cujos juízes são escolhidos pelos partidos maioritários e contribuem decididamente para a estabilidade deste sistema.
Em quarto lugar, as grandes empresas de construção civil têm influenciado decididamente as decisões políticas. Parte da crise atual pode ser explicada pelos arranjos das grandes empresas da construção civil, com os bancos e o poder político. Estes grupos de interesses tiveram ao longo dos últimos anos uma ação concertada que desaguou nas parcerias público-privadas. Os bancos emprestavam o dinheiro, as construtoras construíam, o Estado pagava a prazo e os partidos ganhavam eleições. A crise financeira internacional veio pôr o fim neste arranjo.
Não nos podemos esquecer também dos grandes monopólios como a EDP, a GALP e brevemente os Correios que absorvem parte dos ex-governantes e que impõem rendas exorbitantes ao Estado, isto é, aos contribuintes.
Falta fazer uma referência aos grandes escritórios de advogados que contratualizam estas relações, ora representando o Estado, ora as grandes empresas. Em simultâneo, redigem as propostas leis que a Assembleia e o governo sufragam. Como disse atrás estes grupos detêm o poder. Não há conflitos porque isso geraria prejuízos e porque parte do pessoal circula da política para as empresas e destas para a administração dos bancos; por outro lado, são comentadores da televisão, moldando o pensamento de cidadãos que absorvem embebecidos as suas palavras.
Podíamos acrescentar outros grupos de interesses como sejam as universidades. Apesar da sua importância e do seu papel no desenvolvimento e inovação do país, foram atiradas para uma posição secundária. Não admira que assim seja, porquanto parte significativa da classe política é oriunda das universidades privadas com cursos a la carte. De resto é significativo que o número de académicos na superestrutura do governo seja pouco significativo.
Mas em contrapartida, o núcleo duro dos grupos dirigentes vindos em grande parte da Monarquia Constitucional (veja-se os Mexias, Ferreira do Amaral, Dias Ferreira, etc.) tiram os cursos na Católica e na Nova, com mestrados em grandes Universidade inglesas e americanas. Esta gente não brinca em serviço como fazem os políticos, entretidos com os seus pequenos negócios.
É isto a nossa democracia, suportada por uma classe média, criada pelos dinheiros europeus e pela dívida externa. Mas agora que a Troika obriga a pagar aos credores, o seu peso é fortemente reduzido pela diminuição de salários, aumento de impostos e cortes de pensões.
O resto da população é arrastada para a penúria e para o desemprego. Mas enquanto a população paga a dívida, os grupos dominantes que gerem o país defendem-se, mantendo o seu nível de rendimentos. Como diz o Primeiro-Ministro é necessário que os portugueses não gastem mais do que o que produzem, regredindo vinte anos no seu nível de vida."

20/08/2013

Noites de Cocaína

“Notei as características daquele mundo silencioso: a imémore arquitectura branca; o ócio forçado que fossilizava o sistema nervoso; o ar quase africanizado, mas de um Norte de África inventado por alguém que nunca pusera os pés no Magrebe; a aparente ausência de qualquer estrutura social; a intemporalidade de um mundo para lá do tédio, sem passado, sem futuro, com um presente cada vez mais curto. Seria aquilo de facto a antevisão de um amanhã dominado pelo ócio? Nada podia acontecer naquele domínio despido de afectos, onde a deriva entrópica acalmava as superfícies de um milhar de piscinas.”
J. G. Ballard – “Noites de Cocaína” – 2000

24/04/2013

A Confraria do Vinho

"Enchi o copo e fui para o alpendre da frente. Sentei-me na cadeira de baloiço que rangeu e acendi um cigarro. A escuridão não tardou. Mais abaixo uma mãe saía de casa para chamar as crianças para jantar. O lampião da esquina acendeu-se e um cão velho passou por baixo dele no caminho para casa. Os olhos brancos dos televisores brilharam através das janelas do outro lado, com cowboys a correr através de ecrãs, e o tiroteio a estalar no crepúsculo de San Elmo. Uma cidade solitária. Todas as terras do vale eram assim: desoladas, uma decadência mística, enclaves da existência humana, com pessoas agrupadas por detrás de pequenas vedações e frágeis paredes estucadas, barricadas contra a escuridão…à espera."
John Fante – “A Confraria do Vinho” - 1977

11/04/2013

A Primavera Há-de Chegar, Bandini

“Gostava do som dessa palavra. Mulheres, mulheres, mulheres. Repetia-a incansavelmente, pois causava-lhe uma secreta excitação. Mesmo durante a missa, quando se via rodeado por umas cinquenta ou cem mulheres, costumava entregar-se aos íntimos prazeres da sua imaginação. E era tudo proibido; tudo aquilo lhe dava uma pegajosa sensação de pecado. O próprio som de algumas palavras era pecaminoso. Prega. Flexível. Mamilo. Tudo pecados. Carnal. Corpo. Escarlate. Lábios. Tudo pecados. E até quando rezava uma ave-maria. Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois Vós entre as mulheres e bendito é o fruto do Vosso ventre. Aquelas palavras abalavam-no como um tremor de terra. O fruto do vosso ventre. Outro pecado.”
John Fante – “A Primavera Há-de Chegar, Bandini” - 1938

22/01/2013

Plataforma em Chamas

"Às 21:30 de uma noite de julho de 1988, ocorreu uma enorme explosão, seguida de incêndio numa plataforma de perfuração de petróleo no Mar do Norte, na costa da Escócia. Perderam a vida 166 membros da equipa da plataforma e dois socorristas naquela que foi qualificada como a maior catástrofe dos 25 anos de história da exploração de petróleo no Mar do Norte. Sobreviveram 63 trabalhadores da plataforma, entre eles Andy Mochan. A sua entrevista ajudou-me a encontrar uma maneira de descrever a determinação dos vencedores dos processos de mudança. Da sua cama no hospital, ele disse que acordou com a explosão e com as sirenes, tendo saido a correr dos seus aposentos até à berma da plataforma, saltando de seguida para a água. Devido à temperatura da água, ele sabia que poderia viver, no máximo, cerca de 20 minutos, se não fosse resgatado. Além disso, o crude derramado nas águas estava em chamas. Mas ainda assim, Andy saltou de uma altura de mais de 45 metros no meio da noite para um mar de chamas repleto de escombros. Quando lhe perguntaram porque tomou a decisão de dar o salto potencialmente fatal, ele não hesitou: - "Era saltar ou morrer queimado." Tratava-se de escolher entre a morte hipotética e a morte certa. Ele saltou porque não tinha nenhuma alternativa - o preço de ficar na plataforma, de manter o status quo, era muito alto. Este é o mesmo tipo de situação que muitas empresas, líderes sociais e políticos encontram diariamente. Às vezes temos que fazer algumas mudanças, não importa quão incertas e assustadoras elas são. Nós, como Andy Mochan, teriamos que enfrentar um preço demasiado alto para não o fazer. Uma “plataforma em chamas” existe quando a manutenção do status quo se torna proibitivamente caro. Grandes mudanças são sempre custosas, mas quando a situação actual é ainda mais gravosa, estamos perante uma situação de "plataforma em chamas". A característica chave que distingue uma decisão tomada numa situação de “plataforma em chamas” de todas as outras decisões não é o nível de emoções envolvido, mas o nível de determinação. Quando estamos numa situação de “plataforma em chamas”, a decisão de fazer grandes mudanças não é apenas uma boa ideia - é um imperativo de sobrevivência".
Daryl R. Conner - "From Managing at the Speed of Change" - 1993 (tradução livre)

07/01/2013

O pastor e a tempestade

“Há uma imagem da política como poder pastoral, que é de Foucault, em que o político, como o padre, é aquele que orienta o rebanho. O que é o pior que pode acontecer ao rebanho? É se o pastor orienta o rebanho para o desfiladeiro. Mas há coisas úteis mesmo para um pastor incompetente que é uma tempestade. Porque numa tempestade o rebanho junta-se e nem é preciso o cão para o juntar. Junta-se espontaneamente. É nessa fase que nós devemos orientar o futuro. Porque quando passar a tempestade não se pode esperar que o rebanho continue ali parado com o temor à catástrofe, mas é nesse momento que é preciso saber para onde vamos dirigir-nos.” (in entrevista a Joaquim Aguiar, Público, 06-01-2013)