18/12/2022

A Queda

"Nessas noites, antes, nessas manhãs, pois a queda produz-se ao romper da alva, eu saio e parto, numa marcha impetuosa, ao longo dos canais. No céu lívido as camadas de penas adelgaçam-se, as pombas sobem um pouco, uma claridade rósea anuncia, ao nível dos telhados, um novo dia da minha criação. No Damrak, o primeiro elétrico faz tinir a sua campainha no ar húmido e toca a alvorada da vida nesta extremidade desta Europa, onde, no momento, centenas de milhões de homens, meus súbditos, se arrastam penosamente da cama, com a boca amarga, a fim de irem para o trabalho sem alegria. Então, pairando em pensamento por cima de todo este continente que me está submetido sem o saber, bebendo a luz de absinto que sobe, ébrio enfim de ruins palavras, sinto-me feliz, sinto-me feliz, proíbo-o de não acreditar que me sinto feliz, que morro de felicidade!
Oh, sol, praias, ilhas sob os alísios, juventude cuja lembrança desespera!"
Albert Camus - "A Queda" - 1956