03/12/2019

A Fenda Aberta

"Mal se olha o Mediterrâneo ficamos logo a perceber por que é que o homem se pôs ali de pé, pela primeira vez, e estendeu ao sol os seus braços. É um mar azul; ou antes, mais azul será por causa da estafada frase que descreve todo o charco, desde o Pólo Norte ao Sul. É o azul feérico dos quadros de Maxfield Parrish; o azul dos livros azuis, da essência azul, de olhos azuis, e a sombra das montanhas é uma faixa de terra verde que contorna cinquenta quilómetros a costa e faz o campo de golfe do mundo. A Riviera! O nome das suas estações, Cannes, Nice, Monte Carlo, evocam a memória de uma centena de reis e de príncipes sem trono que ali foram morrer, de rajás e beis misteriosos a atirar diamantes azuis a dançarinas inglesas, milionários russos a delapidar fortunas na roleta nesses dias de caviar já perdidos, de antes da guerra.
Desde Charles Dickens a Catarina de Médicis, desde Eduardo Príncipe de Gales no auge da popularidade a Oscar Wilde no mais fundo da desgraça, toda a gente veio esquecer aqui ou celebrar, esconder-se ou libertar-se, construir palácios brancos sobre saques da opressão ou escrever livros que às vezes minam esses mesmos palácios. Atrás de persianas descidas e à frente do mar, grãos-duques e batoteiros e diplomatas fumavam lentamente cigarros enquanto se passava de 1913 a 14 sem o calendário mudar de folha e ao norte a tempestade se adensava para três quartos de todos eles serem varridos com a sua fúria."
F. Scott Fitzgerald - "Viver um Ano de Quase Nada" - 1924

09/11/2019

As Partículas Elementares

“Não sirvo para nada, disse Bruno com resignação. Sou incapaz de criar porcos. Não tenho a mínima ideia sobre a fabricação de salsichas, garfos ou telemóveis. Sou incapaz de produzir qualquer desses objectos com os quais vivo e que utilizo ou devoro; nem sequer sou capaz de compreender o seu processo de produção. Se a indústria tivesse de parar, não era comigo que podia contar para recomeçar a produzir. Se me pusessem fora do complexo económico-industrial, não estaria sequer em condições de assegurar a minha sobrevivência. Não saberia alimentar-me, vestir-me, proteger-me dos rigores do clima; as minhas competências técnicas individuais são inferiores às do homem do Neandertal. Completamente dependente da sociedade que me rodeia, não lhe sirvo, em troca, praticamente nada. Tudo o que eu sei fazer é produzir comentários duvidosos sobre objectos culturais fora de uso. Contudo, recebo um salário, até um bom salário, largamente superior ao da maioria das pessoas. E a maior parte dos que conheço estão nas mesmas condições.”
Michel Houellebecq – "As Partículas Elementares" - 1998

31/08/2019

Kingdom Come

“Gostamos de faixas de rodagem duplas e de parques de estacionamento. Gostamos de arquitectura estilo torres de controlo e amizades que duram uma tarde. Não há nenhuma autoridade civil a dizer-nos o que fazer. Não há cá câmaras municipais nem assembleias gerais. Gostamos da prosperidade filtrada através das vendas de carros e de electrodomésticos. Gostamos de estradas que levam para lá de aeroportos, gostamos de transitários de transportes aéreos e de parques de aluguer de carrinhas, gostamos de pacotes de férias comprados num impulso com destino a qualquer sítio que nos dê na real gana. Somos os cidadãos do centro comercial e da marina, da internet e da televisão por cabo. Gostamos disto aqui e não temos pressa nenhuma que você se junte a nós.” 
J.G. Ballard – “Reino do Amanhã” - 2006

24/07/2019

Desertos Emocionais

“As periferias gozam de uma beleza para a qual não foram construídas. Foram construídas para serem espaços sem interesse, sem afecto, sem amor. E, apesar disso, há uma beleza que sobressai. É claro que há problemas, mas o número de pessoas com desejo, com um brilho nos olhos, é imenso. Nasci na periferia de Génova, na periferia oeste, onde está a classe operária. Cresci com essa ideia, toda a vida trabalhei nas periferias. Se não formos capazes de transformar as periferias em lugares urbanos, será um desastre, porque os centros das cidades vão tornar-se cada vez mais pequenos museus, centros comerciais a céu aberto, totalmente gentrificados, e as periferias irão tornar-se descontroladas. Esta é a causa nos próximos 50 anos.”
Entrevista a Renzo Piano – Revista do Expresso n.º 2422 de 30-03-2019

13/07/2019

Primeiro Amor, Últimos Ritos

“Desde o princípio do Verão até começar a parecer absurdo, púnhamos o colchão fino em cima da mesa de carvalho pesada e fazíamos amor em frente da grande janela aberta. Havia sempre uma brisa ligeira a soprar no quarto e os odores das docas quatro andares mais abaixo. Era assaltado por fantasias contra minha vontade, fantasias acerca do pequeno ser, e depois, quando ficávamos deitados de costas na mesa enorme, nos silêncios profundos, ouvia-o correr e arranhar de uma forma quase imperceptível. Tudo aquilo era novidade para mim, sentia-me inquieto e tentava conversar com a Sissel para me tranquilizar. Mas ela não tinha nada para dizer, nunca fazia abstracções nem discutia situações, pois vivia dentro delas. Ficávamos a contemplar o rodopio das gaivotas no nosso quadrado de céu e perguntávamo-nos se elas também nos estariam a ver; era desse género de coisas que falávamos, hipóteses ligeiramente divertidas sobre o momento presente.” 
Ian McEwan – “Primeiro Amor, Últimos Ritos” - 1975

01/06/2019

Novos Monopólios

"O Facebook é o caso perfeito para inverter caminho, justamente por a empresa obter o seu rendimento com anúncios dirigidos, o que significa que os utilizadores não têm que pagar para utilizar o serviço. Mas ele não é realmente gratuito, e de certeza que não é inofensivo.
O modelo do Facebook assenta em capturar ao máximo a nossa atenção, para encorajar as pessoas a criarem e a partilharem mais informações sobre quem são e quem desejam ser. Pagamos o Facebook com os nossos dados e a nossa atenção, e por qualquer desses critérios ele não sai barato."
Chris Hughes (co-fundador do Facebook) – The New York Times / Expresso

15/05/2019

A Pista de Gelo

"Certa tarde, enquanto dormia, Caridad entrou na tenda, despiu-se e fizemos amor, mais ou menos da mesma maneira, como se aquilo nada tivesse a ver connosco e os amantes de verdade estivessem mortos e enterrados. Mas era a primeira vez e foi bonito, e a partir de então começámos a falar mais um pouco, não muito, mas mais um pouco, sim…"
Roberto Bolaño - "A Pista de Gelo" – 1993

11/05/2019

06/05/2019

Literatura para Cansados

“Um ato de criação não se subordina. É triste olhar para os livros e pensar que são quase todos iguais, quando há uma infinidade de possibilidades. Isso é de uma pobreza e também reflete um cansaço. Os leitores estão cansados, as pessoas trabalham muito, têm vidas duras e há uma literatura para cansados, para pessoas que vêm do trabalho e que querem ler um livro como quem quer ter uma massagem ao final do dia. Mas a função da arte e da literatura não é descansar. É acordar, perturbar, refletir. Não deveríamos ver arte ou ler livros quando estamos cansados. A literatura e a arte exigem muito de nós.”
Entrevista a Gonçalo M. Tavares – Revista do Expresso de 06-04-2019

11/04/2019

A Noite e o Riso

“…Dei logo em meter olhos nos que tinham precedido a minha geração temporal em tais praças de ritmo. Penso neles quotidianamente, arrepiado. E mais resmungo réquies lembrando a moribundação de vários companheiros. Vi: grandes mecos da melhor extracção humana rapidamente sorvidos; contaminação de quem, em vez de fazer vida, deixa que o tempo a esboroe com vagares dum oceano lamentável devorando o litoral.
De começo, tudo risota e toca-a-andar. Éramos muito novos e tínhamos as algibeiras cheias de possível – a única moeda inoxidável pela desvalorização normal.”
Nuno Bragança - "A Noite e o Riso" - 1969