01/11/2024

Cheio de Vida

“Passei a palma da mão no mesmo sítio. Quase desmaiei quando os dois altos me pressionaram a mão. Então era verdade: tínhamos concebido um monstro. Cambaleei até ao piso de baixo. Na pequena divisão onde tínhamos o telefone, junto à cozinha, naquele recanto, fiquei de pé, no escuro, com a cabeça contra a parede, e comecei a chorar de novo.
Agora muitas coisas eram claras, o passado era revelado como um caixote do lixo que se despeja. Porque não era culpa da Joyce. A sua vida tinha sido pura, imaculada. Mas os anos pré-maritais de John Fante foram anos insensatos com namoros confusos. Não faltava motivo para corar; houvera pecados, pecados graves, e, algures neste remoinho nefasto, o castigo fora semeado e agora estava na altura de ceifar a colheita maldita.”
John Fante – “Cheio de Vida” - 1952

01/10/2024

Olá, América!

“Wayne tratou de manter o olhar na paisagem que o rodeava – uma infindável sucessão de pequenas cidades poeirentas, e, pelo meio, depressões salinas – o terreno ideal para artemísias e erva-dos-burros. Apressou as mulas. Quanto mais depressa deixassem para trás as viaturas ali paradas a enferrujar, melhor. O seu olhar agora treinado já se apercebia das movimentações dos escorpiões, da cascavel escondida debaixo de um autocarro e que a sua aproximação deixara alerta ou de um monstro-de-gila que os cascos dos cavalos tinham vindo incomodar. Menos de um quilómetro adiante, um solitário milhafre ia rondando um desprecavido roedor do deserto. Sob um céu de metal fundido, a América parecia embalsamada na poeira, naftalinada na areia branca, à espera de um sopro poderoso que a ressuscitaria.”
J. G. Ballard – “Olá, América!” - 1981

23/08/2024

21/07/2024

Fotos

“…enquanto a tarde continua a arrastar a aldeia para oeste e os urubus-de-cabeça-preta começam a aparecer em cima das copas de umas árvores baixas, só que Denise é loura e Nadia é morena, belíssimas as duas, uma de sessenta e um e a outra de sessenta e quatro, oxalá estejam vivas, pensa, com o olhar fixo não nas fotos do livro mas na linha do horizonte onde os pássaros se mantêm num equilíbrio instável, corvos ou abutres ou urubus-de-cabeça-preta, e então Belano recorda um poema de Gregory Corso, onde o infeliz poeta norte-americano falava do seu único amor, uma egípcia morta há dois mil e quinhentos anos, e Belano recorda o rosto de menino da rua de Corso e uma figura de arte egípcia que vira há muito tempo numa caixinha de fósforos, uma rapariga que sai do banho ou de um rio ou de uma piscina e o poeta beat (o entusiasta e infeliz Corso) contempla-a do outro lado do tempo, e a rapariga egípcia de longas pernas sente-se contemplada, e isso é tudo, o flirt entre a egípcia e Corso é breve como um suspiro na vastidão do tempo, mas também o tempo e a sua distante soberania podem ser um suspiro, pensa Belano enquanto contempla os pássaros nos ramos, silhuetas na linha do horizonte, um eletrocardiograma que se agita ou abre as asas à espera da sua morte, da minha morte…”
Roberto Bolaño - conto "Fotos" incluído no livro "Putas Assassinas" – 2001

21/06/2024

02/06/2024

A Mancha Humana

“Encontra-se lá agora sozinho com Faunia, cada um a proteger o outro de todos os outros – cada um abrangendo, para o outro, todos os outros. Ali dançam, muito provavelmente despidos, ao abrigo da vida provações terrenas, num paraíso extramundano de luxúria muito deste mundo, no qual o acasalamento é o drama onde decantam todo o furioso desencanto das suas vidas. Lembrei-me de uma coisa que ele me contara ter-lhe Faunia dito no resplendor crepuscular de uma das suas noites, quando tanto parecia estar a passar-se entre eles. Ele dissera-lhe: «Isto é mais do que sexo», e ela respondera, redondamente: «Não, não é. Tu é que te esqueceste do que o sexo é. Isto é sexo. Sexo puro. Não lixes tudo fingindo que é outra coisa.»
Quem são eles agora? A versão mais simples possível de si mesmos. A essência da singularidade. Tudo quanto é doloroso cristalizado em paixão. Podem até já não lamentar que as coisas não sejam diferentes. Estão por de mais entrincheirados na indignação para se preocuparem com isso. Saíram de baixo de tudo quanto jamais se acumulou sobre eles. Nada na vida os tenta, nada na vida os excita, nada na vida mitiga o seu ódio pela vida como esta intimidade. Quem são estas pessoas radicalmente desiguais, tão incongruentemente aliadas ao 71 e 34 anos? São a tragédia para a qual foram intimadas.”
Philip Roth - "A Mancha Humana" - 2000

16/02/2024

A Voz Perdida dos Homens

- Vejo pistas sobre o macadame e uma ex-putinha que ama um homem das sombras. Ela pensa que amar é uma alquimia do coração e do corpo com um deserto infinito a preencher de odores e de cores, de palavras trocadas ao mesmo tempo que os gestos, dias tórridos e noites geladas, agachar-se, detectar as miragens e correr ao encontro delas para as encher de realidade. Vejo ainda duas vidas perdidas na vastidão, separadas por anos-luz de areia e que se percutem pelo maior dos acasos, atraídas como as bússolas e o Grande Norte, a agulha e o pólo das pessoas mortificadas que acham juntas o ponto que reluz. Deste lugar impossível nascem os possíveis – a nossa bela catástrofe –, um homem e uma mulher, como sempre, o mais improvável dos encontros.
Microprocessadores de silício
Substituirão um dia a memória dos homens.
Jamais te olvidarei…
Yves Simon - "A Voz Perdida dos Homens" - 2001

27/01/2024

17/12/2023

Contos

“Depois da noite em que perdera todos os seus bens na banca do cavaleiro, não voltara a tocar numa carta, mas, nos últimos momentos da sua vida, o jogo voltou a dominar-lhe a vontade. Enquanto o sacerdote, a seu lado, lhe ministrava a extrema-unção, preparando-o para a passagem deste mundo para o outro, dando-lhe o conforto da Igreja, falando-lhe de coisas espirituais, ele, na cama, de olhos abertos, murmurava entre dentes: “Perde…, ganha…”. Ao mesmo tempo, fazia com as mãos os movimentos de quem baralha e dá as cartas. Era em vão que Ângela e o cavaleiro se inclinavam sobre o leito, procurando acarinhá-lo. Não os reconhecia e, quando acabou por entregar a alma ao Criador, ainda repetia: “Perde…, ganha…”
E.T.A.Hoffman – “Contos” – 1812

15/10/2023

Limonov

"Limonov não é um personagem de ficção. Ele existe. Eu conheço-o. Foi um marginal na Ucrânia; ídolo do underground soviético na era Brejnev; sem-abrigo e depois mordomo de um milionário em Manhattan; escritor de vanguarda em Paris; soldado perdido nas guerras dos Balcãs; e agora, no imenso caos do pós-comunismo na Rússia, velho chefe carismático de um partido de jovens em fúria. Vê-se a si próprio como um herói, mas podemos considerá-lo um bandido: por mim, deixo o julgamento em suspenso. É uma vida perigosa, ambígua: um verdadeiro romance de aventuras. É também, creio, uma vida que conta qualquer coisa. Não apenas sobre ele, Limonov, não apenas sobre a Rússia, mas sobre a história de todos nós depois do fim da Segunda Guerra Mundial."
Emmanuel Carrère - "Limonov" - 2011

28/07/2023

Mendigos e Altivos

"O burburinho das vozes e a claridade dos candeeiros de acetilene acolheram-no, qual refúgio benfazejo. A esta hora da noite, o Café dos Espelhos ficava cheio de uma malta turbulenta que enchia as mesas todas e deambulava em lenta procissão pela rua de terra batida. Da incessante telefonia saltava, vagas duma música tempestuosa, a qual, amplificada pelos altifalantes, afogava numa mesma confusão a magnificência das conversas, dos gritos e dos risos. Neste tumulto grandioso, dedicavam-se a uma espécie de actividade divertida mendigos andrajosos, cata-beatas, vendedores ambulantes, quais saltimbancos em feira ruidosa. E todas as noites assim era, ali surgindo aquele ambiente de arraial. O Café dos Espelhos parecia ser um lugar criado pela sabedoria dos homens e situado nos confins de um mundo consagrado à tristeza."
Albert Cossery -"Mendigos e Altivos" - 1955