13/04/2025

A Linha de Sombra

 
"A tarde pusera-se extremamente mortiça. Durante vários dias seguidos, surgiam nuvens a pouca distância, volumes brancos em volutas enegrecidas, tocando as águas, imóveis, quase sólidas, e não obstante, mudando de aspecto de momento a momento. Por altura do cair da noite, regra geral, desapareciam. Mas naquele dia estavam como que à espera do sol posto, que cintilou incandescente e se foi extinguindo numa labareda vagarosa antes de submergir por inteiro. Com a sua pontualidade fatigada, as estrelas reacenderam-se por cima das borlas da mastreação, enquanto a atmosfera permanecia, contudo, asfixiante e parada."
Joseph Conrad - "A Linha de Sombra" - 1917

25/03/2025

23/02/2025

A Um Deus Desconhecido

"A calma voltou a apossar-se dele e o medo desapareceu. «Vou subir ao rochedo e dormir um pouco», disse. Sentiu uma pequena dor no pulso e ergueu o braço para ver o que era. Tinha-se cortado numa fivela da sela; o pulso e a palma da mão sangravam. Olhando a ferida, a calma tornou-se mais firme em volta dele e a solidão separou-o do bosque e do resto do mundo. «Pois vou subir ao rochedo», disse. Trepou-lhe cuidadosamente pelo flanco íngreme até que ficou estendido sobre o musgo alto e fofo do cimo do rochedo. Depois de descansar uns momentos, agarrou de novo na faca e, com cuidado, suavemente, abriu as veias do pulso. A dor, a princípio, foi aguda, mas em breve esta sensação se atenuou. Joseph olhava o sangue que borbotava e ia escorrendo sobre o musgo e ouvia o clamor do vento em torno do bosque. O céu estava ficando cinzento. O tempo rolou e Joseph ficava cinzento também. Estava deitado de lado, com o pulso estendido, e baixou os olhos para a longa cordilheira negra do seu corpo. Este começou a tornar-se enorme e leve. Subiu ao céu, e dele começou a cair chuva em torrentes. «Eu devia ter sabido», suspirou Joseph. «Eu sou a chuva.»"
John Steinbeck - "A Um Deus Desconhecido" - 1933

11/02/2025

27/01/2025

O Último Cabalista de Lisboa

"O Rossio abria-se como uma ferida infetada inçado de enxames de pessoas vociferantes. Apinhavam-se em volta de carruagens enfeitadas, giravam pelas grandes arcadas do Hospital de Todos-os-Santos, debruçavam-se em risadas das varandas e dos beirais das janelas. As gaivotas descreviam grandes círculos no céu, soltando gritos agudos. Um maltrapilho dançava, fazendo com que o pus das suas pústulas cheias de crostas lhe escorresse para os pés. «Mordido por uma tarântula», gritou-me uma velha de pele curtida. «Não pode parar, nem sequer para aquilo!» E riu-se até se engasgar com um furioso ataque de tosse.
Acima das cabeças da multidão, viam-se subir colunas de fumo espesso em frente da Igreja dos Dominicanos. Foi o calor da emoção que me fez avançar. Voltar atrás nessa altura seria como fugir a Deus em pessoa. Ou do Demónio no momento em que ataca. E só os santos possuem esse poder."
Richard Zimler - "O Último Cabalista de Lisboa" - 2013