16/02/2024

A Voz Perdida dos Homens

- Vejo pistas sobre o macadame e uma ex-putinha que ama um homem das sombras. Ela pensa que amar é uma alquimia do coração e do corpo com um deserto infinito a preencher de odores e de cores, de palavras trocadas ao mesmo tempo que os gestos, dias tórridos e noites geladas, agachar-se, detectar as miragens e correr ao encontro delas para as encher de realidade. Vejo ainda duas vidas perdidas na vastidão, separadas por anos-luz de areia e que se percutem pelo maior dos acasos, atraídas como as bússolas e o Grande Norte, a agulha e o pólo das pessoas mortificadas que acham juntas o ponto que reluz. Deste lugar impossível nascem os possíveis – a nossa bela catástrofe –, um homem e uma mulher, como sempre, o mais improvável dos encontros.
Microprocessadores de silício
Substituirão um dia a memória dos homens.
Jamais te olvidarei…
Yves Simon - "A Voz Perdida dos Homens" - 2001

27/01/2024

17/12/2023

Contos

“Depois da noite em que perdera todos os seus bens na banca do cavaleiro, não voltara a tocar numa carta, mas, nos últimos momentos da sua vida, o jogo voltou a dominar-lhe a vontade. Enquanto o sacerdote, a seu lado, lhe ministrava a extrema-unção, preparando-o para a passagem deste mundo para o outro, dando-lhe o conforto da Igreja, falando-lhe de coisas espirituais, ele, na cama, de olhos abertos, murmurava entre dentes: “Perde…, ganha…”. Ao mesmo tempo, fazia com as mãos os movimentos de quem baralha e dá as cartas. Era em vão que Ângela e o cavaleiro se inclinavam sobre o leito, procurando acarinhá-lo. Não os reconhecia e, quando acabou por entregar a alma ao Criador, ainda repetia: “Perde…, ganha…”
E.T.A.Hoffman – “Contos” – 1812

15/10/2023

Limonov

"Limonov não é um personagem de ficção. Ele existe. Eu conheço-o. Foi um marginal na Ucrânia; ídolo do underground soviético na era Brejnev; sem-abrigo e depois mordomo de um milionário em Manhattan; escritor de vanguarda em Paris; soldado perdido nas guerras dos Balcãs; e agora, no imenso caos do pós-comunismo na Rússia, velho chefe carismático de um partido de jovens em fúria. Vê-se a si próprio como um herói, mas podemos considerá-lo um bandido: por mim, deixo o julgamento em suspenso. É uma vida perigosa, ambígua: um verdadeiro romance de aventuras. É também, creio, uma vida que conta qualquer coisa. Não apenas sobre ele, Limonov, não apenas sobre a Rússia, mas sobre a história de todos nós depois do fim da Segunda Guerra Mundial."
Emmanuel Carrère - "Limonov" - 2011

28/07/2023

Mendigos e Altivos

"O burburinho das vozes e a claridade dos candeeiros de acetilene acolheram-no, qual refúgio benfazejo. A esta hora da noite, o Café dos Espelhos ficava cheio de uma malta turbulenta que enchia as mesas todas e deambulava em lenta procissão pela rua de terra batida. Da incessante telefonia saltava, vagas duma música tempestuosa, a qual, amplificada pelos altifalantes, afogava numa mesma confusão a magnificência das conversas, dos gritos e dos risos. Neste tumulto grandioso, dedicavam-se a uma espécie de actividade divertida mendigos andrajosos, cata-beatas, vendedores ambulantes, quais saltimbancos em feira ruidosa. E todas as noites assim era, ali surgindo aquele ambiente de arraial. O Café dos Espelhos parecia ser um lugar criado pela sabedoria dos homens e situado nos confins de um mundo consagrado à tristeza."
Albert Cossery -"Mendigos e Altivos" - 1955

30/04/2023

Fantasmas da Minha Vida

"São os irreabilitados, uma geração perdida, «sempre a suspirar pelo tempo que acabou de nos fugir»: os que nasceram demasiado tarde para o punk, mas cujas expectativas foram elevadas pelo seu incendiário crepúsculo; os que assistiram à Greve dos Mineiros com olhos adolescentes e apoiantes, mas que eram demasiado novos para participarem efectivamente na militância; os que sentiram a euforia desejosa de futuro da rave como um direito natural, sem sonharem que ela poderia esfumar-se como sinapses fritas; os que, em suma, simplesmente não achavam suportável a «realidade» imposta pelas forças conquistadoras do neoliberalismo. A regra é adaptar-se ou morrer, estando muitas formas diferentes de morte à disposição de quem não conseguir apanhar o alvoroço comercial ou puxar do entusiasmo indispensável para as indústrias criativas. Seis milhões de maneiras de morrer, é só escolher uma: drogas, depressão, indigência, tantas formas de colapso catatónico. Noutros tempos, os «pervertidos, psicóticos e os que se iam mentalmente abaixo» inspiravam poetas-militantes, situacionistas, sonhadores da rave. Agora, são encarcerados em hospitais, ou ficam a definhar na sarjeta."
Mark Fisher - "Fantasmas da Minha Vida - Escritos sobre Depressão, Hantologia e Futuros Perdidos" - 2014

08/02/2023

Poly Styrene

Foto: Falcon Stuart

28/01/2023

Fogo Grande

“Esperei por Sílvia todo aquele dia e, como sempre, passei pelos estados de alma que já conhecia do tempo em que estive sozinho e a procurava por toda a parte. Agora, porém, Sílvia estava realmente, por todo o lado, e passei o dia muito mais perto dela. A casa, o pátio e o campo continham uma Sílvia imutável e antiga, em que podia pensar sem ansiedade nem doçura. Bastava-me sentir e absorver quanto era grande, diferente e familiar aquela realidade em que ela nascera e à qual, embora debatendo-se até porque se debatia consigo própria, acabava por pertencer cada vez mais. Poder dispensá-la, pois chegara a tocar qualquer coisa do mais profundo da sua presença, libertava-me e saciava-me.”
Cesare Pavese & Bianca Garufi – “Fogo Grande” - 1959

11/01/2023

Talk Talk

Foto: Brian Griffin

18/12/2022

A Queda

"Nessas noites, antes, nessas manhãs, pois a queda produz-se ao romper da alva, eu saio e parto, numa marcha impetuosa, ao longo dos canais. No céu lívido as camadas de penas adelgaçam-se, as pombas sobem um pouco, uma claridade rósea anuncia, ao nível dos telhados, um novo dia da minha criação. No Damrak, o primeiro elétrico faz tinir a sua campainha no ar húmido e toca a alvorada da vida nesta extremidade desta Europa, onde, no momento, centenas de milhões de homens, meus súbditos, se arrastam penosamente da cama, com a boca amarga, a fim de irem para o trabalho sem alegria. Então, pairando em pensamento por cima de todo este continente que me está submetido sem o saber, bebendo a luz de absinto que sobe, ébrio enfim de ruins palavras, sinto-me feliz, sinto-me feliz, proíbo-o de não acreditar que me sinto feliz, que morro de felicidade!
Oh, sol, praias, ilhas sob os alísios, juventude cuja lembrança desespera!"
Albert Camus - "A Queda" - 1956

10/11/2022

PIER PAOLO PASOLINI - Centenário 1922-2022


Pier Paolo Pasolini - Centenário 1922-2022; Acrílico e tinta china s/ papel de Primobansky - Porto

28/10/2022

Intervenções

"Consciente de que a vida dos homens se desenrola num ambiente biológico, técnico e sentimental (quer dizer, só muito acessoriamente político), consciente de que essa vida tem por desígnio o esforço para alcançar objectivos privados, ele rejeitará instintivamente qualquer convicção política vincada. O homem revoltado, o resistente, o patriota, o agitador surgir-lhe-ão antes de tudo como indivíduos desprezíveis, movidos pela estupidez, pela vaidade e pelo desejo de violência.
Contrariamente ao reaccionário, o conservador não tem nem heróis nem mártires; se não salva ninguém também não faz vitimas, não haverá nele nada, em suma, de particularmente heroico; mas será, é um dos seus encantos, um individuo muito pouco perigoso.”
Michel Houellebecq - “Intervenções” - 2021