25/03/2025

23/02/2025

A Um Deus Desconhecido

"A calma voltou a apossar-se dele e o medo desapareceu. «Vou subir ao rochedo e dormir um pouco», disse. Sentiu uma pequena dor no pulso e ergueu o braço para ver o que era. Tinha-se cortado numa fivela da sela; o pulso e a palma da mão sangravam. Olhando a ferida, a calma tornou-se mais firme em volta dele e a solidão separou-o do bosque e do resto do mundo. «Pois vou subir ao rochedo», disse. Trepou-lhe cuidadosamente pelo flanco íngreme até que ficou estendido sobre o musgo alto e fofo do cimo do rochedo. Depois de descansar uns momentos, agarrou de novo na faca e, com cuidado, suavemente, abriu as veias do pulso. A dor, a princípio, foi aguda, mas em breve esta sensação se atenuou. Joseph olhava o sangue que borbotava e ia escorrendo sobre o musgo e ouvia o clamor do vento em torno do bosque. O céu estava ficando cinzento. O tempo rolou e Joseph ficava cinzento também. Estava deitado de lado, com o pulso estendido, e baixou os olhos para a longa cordilheira negra do seu corpo. Este começou a tornar-se enorme e leve. Subiu ao céu, e dele começou a cair chuva em torrentes. «Eu devia ter sabido», suspirou Joseph. «Eu sou a chuva.»"
John Steinbeck - "A Um Deus Desconhecido" - 1933

11/02/2025

27/01/2025

O Último Cabalista de Lisboa

"O Rossio abria-se como uma ferida infetada inçado de enxames de pessoas vociferantes. Apinhavam-se em volta de carruagens enfeitadas, giravam pelas grandes arcadas do Hospital de Todos-os-Santos, debruçavam-se em risadas das varandas e dos beirais das janelas. As gaivotas descreviam grandes círculos no céu, soltando gritos agudos. Um maltrapilho dançava, fazendo com que o pus das suas pústulas cheias de crostas lhe escorresse para os pés. «Mordido por uma tarântula», gritou-me uma velha de pele curtida. «Não pode parar, nem sequer para aquilo!» E riu-se até se engasgar com um furioso ataque de tosse.
Acima das cabeças da multidão, viam-se subir colunas de fumo espesso em frente da Igreja dos Dominicanos. Foi o calor da emoção que me fez avançar. Voltar atrás nessa altura seria como fugir a Deus em pessoa. Ou do Demónio no momento em que ataca. E só os santos possuem esse poder."
Richard Zimler - "O Último Cabalista de Lisboa" - 2013

26/11/2024

Campo de Ténis


Taipas - Guimarães - Dezembro de 2022

01/11/2024

Cheio de Vida

“Passei a palma da mão no mesmo sítio. Quase desmaiei quando os dois altos me pressionaram a mão. Então era verdade: tínhamos concebido um monstro. Cambaleei até ao piso de baixo. Na pequena divisão onde tínhamos o telefone, junto à cozinha, naquele recanto, fiquei de pé, no escuro, com a cabeça contra a parede, e comecei a chorar de novo.
Agora muitas coisas eram claras, o passado era revelado como um caixote do lixo que se despeja. Porque não era culpa da Joyce. A sua vida tinha sido pura, imaculada. Mas os anos pré-maritais de John Fante foram anos insensatos com namoros confusos. Não faltava motivo para corar; houvera pecados, pecados graves, e, algures neste remoinho nefasto, o castigo fora semeado e agora estava na altura de ceifar a colheita maldita.”
John Fante – “Cheio de Vida” - 1952

01/10/2024

Olá, América!

“Wayne tratou de manter o olhar na paisagem que o rodeava – uma infindável sucessão de pequenas cidades poeirentas, e, pelo meio, depressões salinas – o terreno ideal para artemísias e erva-dos-burros. Apressou as mulas. Quanto mais depressa deixassem para trás as viaturas ali paradas a enferrujar, melhor. O seu olhar agora treinado já se apercebia das movimentações dos escorpiões, da cascavel escondida debaixo de um autocarro e que a sua aproximação deixara alerta ou de um monstro-de-gila que os cascos dos cavalos tinham vindo incomodar. Menos de um quilómetro adiante, um solitário milhafre ia rondando um desprecavido roedor do deserto. Sob um céu de metal fundido, a América parecia embalsamada na poeira, naftalinada na areia branca, à espera de um sopro poderoso que a ressuscitaria.”
J. G. Ballard – “Olá, América!” - 1981

23/08/2024

21/07/2024

Fotos

“…enquanto a tarde continua a arrastar a aldeia para oeste e os urubus-de-cabeça-preta começam a aparecer em cima das copas de umas árvores baixas, só que Denise é loura e Nadia é morena, belíssimas as duas, uma de sessenta e um e a outra de sessenta e quatro, oxalá estejam vivas, pensa, com o olhar fixo não nas fotos do livro mas na linha do horizonte onde os pássaros se mantêm num equilíbrio instável, corvos ou abutres ou urubus-de-cabeça-preta, e então Belano recorda um poema de Gregory Corso, onde o infeliz poeta norte-americano falava do seu único amor, uma egípcia morta há dois mil e quinhentos anos, e Belano recorda o rosto de menino da rua de Corso e uma figura de arte egípcia que vira há muito tempo numa caixinha de fósforos, uma rapariga que sai do banho ou de um rio ou de uma piscina e o poeta beat (o entusiasta e infeliz Corso) contempla-a do outro lado do tempo, e a rapariga egípcia de longas pernas sente-se contemplada, e isso é tudo, o flirt entre a egípcia e Corso é breve como um suspiro na vastidão do tempo, mas também o tempo e a sua distante soberania podem ser um suspiro, pensa Belano enquanto contempla os pássaros nos ramos, silhuetas na linha do horizonte, um eletrocardiograma que se agita ou abre as asas à espera da sua morte, da minha morte…”
Roberto Bolaño - conto "Fotos" incluído no livro "Putas Assassinas" – 2001

21/06/2024

02/06/2024

A Mancha Humana

“Encontra-se lá agora sozinho com Faunia, cada um a proteger o outro de todos os outros – cada um abrangendo, para o outro, todos os outros. Ali dançam, muito provavelmente despidos, ao abrigo da vida provações terrenas, num paraíso extramundano de luxúria muito deste mundo, no qual o acasalamento é o drama onde decantam todo o furioso desencanto das suas vidas. Lembrei-me de uma coisa que ele me contara ter-lhe Faunia dito no resplendor crepuscular de uma das suas noites, quando tanto parecia estar a passar-se entre eles. Ele dissera-lhe: «Isto é mais do que sexo», e ela respondera, redondamente: «Não, não é. Tu é que te esqueceste do que o sexo é. Isto é sexo. Sexo puro. Não lixes tudo fingindo que é outra coisa.»
Quem são eles agora? A versão mais simples possível de si mesmos. A essência da singularidade. Tudo quanto é doloroso cristalizado em paixão. Podem até já não lamentar que as coisas não sejam diferentes. Estão por de mais entrincheirados na indignação para se preocuparem com isso. Saíram de baixo de tudo quanto jamais se acumulou sobre eles. Nada na vida os tenta, nada na vida os excita, nada na vida mitiga o seu ódio pela vida como esta intimidade. Quem são estas pessoas radicalmente desiguais, tão incongruentemente aliadas ao 71 e 34 anos? São a tragédia para a qual foram intimadas.”
Philip Roth - "A Mancha Humana" - 2000

16/02/2024

A Voz Perdida dos Homens

- Vejo pistas sobre o macadame e uma ex-putinha que ama um homem das sombras. Ela pensa que amar é uma alquimia do coração e do corpo com um deserto infinito a preencher de odores e de cores, de palavras trocadas ao mesmo tempo que os gestos, dias tórridos e noites geladas, agachar-se, detectar as miragens e correr ao encontro delas para as encher de realidade. Vejo ainda duas vidas perdidas na vastidão, separadas por anos-luz de areia e que se percutem pelo maior dos acasos, atraídas como as bússolas e o Grande Norte, a agulha e o pólo das pessoas mortificadas que acham juntas o ponto que reluz. Deste lugar impossível nascem os possíveis – a nossa bela catástrofe –, um homem e uma mulher, como sempre, o mais improvável dos encontros.
Microprocessadores de silício
Substituirão um dia a memória dos homens.
Jamais te olvidarei…
Yves Simon - "A Voz Perdida dos Homens" - 2001

27/01/2024