Depois de ter sido durante os seus tempos áureos a Casa Mãe da Congregação Beneditina de Portugal e do Brasil, depois de um período de negligência, delapidação e abandono, depois de ter experimentado um programa integrado de restauro e recuperação, o Mosteiro de São Martinho de Tibães prepara-se para iniciar um capítulo essencial no seu processo de reabilitação. Com uma origem cujas primeiras referências remontam ao início do século XI, (e de forma não documentada à época dos Suevos e de São Martinho de Dume, no século VI), com traços arquitectónicos dominantes que correspondem às remodelações empreendidas ao longo dos séculos XVII e XVIII, o imponente complexo monástico assiste no presente à conclusão dos trabalhos levados a cabo na Ala Sul, Noviciado e Claustro do Refeitório, este último e parte das alas Sul e Nascente destruídos por um grande incêndio no final do século XIX, já depois da extinção das ordens religiosas em Portugal. Como corolário destas novas valências e percursos expositivos o Mosteiro vai voltar a ser novamente um espaço habitado, passando a albergar uma pequena comunidade religiosa feminina responsável pela manutenção de uma hospedaria e de um restaurante abertos ao público.
Esta expectativa de primavera em Tibães assume neste projecto de intervenção artística um efeito galvanizante que intensifica o silêncio e a sobreposição de vivências que caracterizaram a organicidade beneditina e que abrangem ainda mais de um século de propriedade privada na fase anterior à sua aquisição pelo estado em 1986. Da ruralidade envolvente ao acolhimento dos inúmeros artistas e artífices que deixaram no património edificado e na cerca conventual o cosmopolitismo da sua passagem, do relacionamento com a comunidade de inserção às responsabilidades administrativas da Congregação, da complexidade das zonas de serviço ao desenho cuidado dos locais de oração, reunião, estudo e contemplação, do seguimento dos preceitos da Regra à concretização dos seus pressupostos pedagógicos de ensino e evangelização, da ênfase dada ao silêncio e ao trabalho manual à preocupação com os malefícios da “murmuração”, do papel desempenhado no passado aos princípios de incorporação e interpretação museológicos actuais, há um profundo diálogo e mediação entre as necessidades e desafios de ordem prática e a vocação espiritual que orientou a construção e a preservação da instituição que estabeleceu aqui um quotidiano de abnegação individual e opulência colectiva, de sacrifício, persistência e dedicação.
Sintetizado no lema “ora e labora” da organização fundada sobre a autoridade do Abade e da Regra de São Bento ou na coexistência da propriedade agrícola particular com o funcionamento da Igreja Paroquial e, mais recentemente, na convivência entre essa realidade marcadamente rural e imbuída de uma religiosidade festiva e popular e as novas funções e exigências museológicas, há em Tibães uma conjugação intensa das dimensões do temporal e do sagrado que aí se interceptam admiravelmente. E que constituem os pressupostos de intervenção que impregnam a identidade deste projecto de habituação ao espaço na contemporaneidade. Combinando o labor produtivo ou conducente ao assombro como objecto de concretização e fruição tangível ao próprio assombro enquanto finalidade directora e crença espiritual na transcendência do invisível.
É com esse enquadramento perceptivo que os visitantes da exposição são convidados a percorrer, paralelamente aos percursos permanentes do programa de visita, as derivas e desdobramentos habitados, vincados pela água e pela liturgia das horas “que ritma a embarcação sanguínea”(*). Na expectativa do reconhecimento e da surpresa na respiração do outro. Na navegação suspensa sobre o infinito “de quem avista uma praça fora do mundo” (*).
(*) Daniel Faria, poeta e monge beneditino falecido em 1999
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